26 06 2009
Segundo a crença Enawenê-Nawê, os Yakairiti são os “espíritos do subterrâneo”. São eles, os responsáveis por todas as coisas ruins que acontecem na vida desses índios que habitam o noroeste do Mato Grosso.
Digo isso, porque a aldeia vive dias tristes com a morte de uma das principais figuras desse povo, o velho Kawali. Segundo a crença Enawenê-Nawê, a morte do seu sotakatare (mestre dos cantos) deve ser mais uma demonstração da ira dos Yakairiti. 2009 não começou bem para os Enawenê. Após um período de resistência no fim do ano passado para impedir a construção de dez Pequenas Centrais Hidrelétricas no rio Juruena, esse ano teve início com uma epidemia de malária entre os índios e a pesca do Yãkwa – principal ritual do grupo – foi um fracasso. Mau sinal.
Kawali, na verdade, morreu sozinho em sua roça, no dia 24, quarta-feira, vítima de uma mordida de cobra. Ainda não se sabe como isso tudo influenciará a rotina desses índios que se guiam pela fé e pelo medo e buscam incansavelmente o equilíbrio com a natureza. Em 2006, quando pude compartilhar a vida por uns dias com os Enawenê-Nawê, Xayoene, um dos índios que conversou comigo, numa frase me deu a dimensão do significado do Yãkwa e da necessidade de agradar os Yakairiti. Ele disse: “Os Yakairiti ficam bravos e vão matar todos e trazer doenças, se alguém deixar de plantar mandioca e de trazer o peixe.”
Que este seja o fim da ira dos Yakairiti sobre os Enawenê. Um povo alegre, amigo e cheio de garra pra lutar pelos seus ideais.
Abaixo, compartilho um texto publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) sobre a morte de Kawali.
Morre Kawali, grande líder político e espiritual do
povo Enawene Nawe
Por Ana Paula Lima Rodgers, Edison Rodrigues de Souza, Juliana de Almeida e Vincent Carelli
Os Enawene Nawe sofreram um duro golpe. No dia 24 de junho faleceu Kawali, um dos representantes mais expoentes desse povo, aõre (líder) e sotakatare (mestre de cantos). Sem dúvida um dos maiores virtuoses dos últimos tempos de sua própria e complexa cultura. Mestre ímpar na arte da palavra, cantada ou falada, Kawali dominava excepcionalmente os caminhos da eloqüência musical e retórica, condições que inevitavelmente o talharam como um grande chefe desde muito cedo. Essa tragédia se coloca num contexto difícil e controverso da atual conjuntura. Líder político e espiritual, Kawali era a figura que mais lutava pela demarcação do Adowina (Rio Preto) e resistia frente aos complexos problemas relacionados à implantação de hidrelétricas no Juruena. Sozinho em sua roça, ele não resistiu a uma mordida de cobra e quando foi encontrado já não tinha mais vida. Os últimos tempos têm sido de muita efervescência para o povo Enawene Nawe. A intensificação do contato somada à necessidade de se relacionar com os eventos da exterioridade tem causado muitos tumultos, incertezas, desavenças e contradições. O primeiro golpe que os Enawene Nawe sofreram em 2009 foi uma epidemia de malária que acometeu quase 35% da sua população. A epidemia só foi contida após três meses da ocorrência dos primeiros casos. Nesse mesmo período os Enawene Nawe saíram para as tradicionais barragens de pesca do ritual Iyaõkwa. Para surpresa e angústia de todos um fato assolou a pescaria: acostumados com uma grande quantia de pescado que eles acessam todos os anos por meio das barragens, desta vez o peixe não veio. Desesperados com a situação os Enawene Nawe apelaram para a assistência da Funai que adquiriu três mil quilos de tambaqui. Mesmo com o apoio da Funai a quantidade de peixe foi muito abaixo da necessária para a realização das trocas cerimoniais do ritual e conseqüentemente irrisória para atender à demanda alimentar dos Enawene Nawe. A falta dos peixes os deixou com precária alimentação simbólica e orgânica, para eles um prenúncio da ira de espíritos que não aceitam a ausência de farta oferenda de peixes. Grande perda Pessoa de extrema generosidade, o falecimento de Kawali não representa apenas uma perda insubstituível, se trata de um evento que somado às pressões de várias frentes desenvolvimentistas no entorno de seu território coloca o povo Enawene Nawe em uma condição de extremo cuidado, pois os priva do sábio filósofo das florestas do Juruena. “Sou eu quem não dorme à noite”, diria o grande sotakatare referindo-se à dura vigília e destino de seu ofício. Recado dos espíritos Yakaliti ou triste acaso do destino, a morte de Kawali representa uma grande perda. Sua sabedoria e carisma, sempre acompanhados de uma boa dose de ironia e argúcia extremas, com certeza deixarão saudades aos familiares, a todo o povo Enawene Nawe e a todos aqueles que de alguma maneira puderam gozar o privilégio de estar junto a ele. Que nos deixemos todos contagiar pela disposição e sabedoria incomparáveis do mestre, que através de arte e conhecimento soube praticar a grande e singular resistência exercitada há séculos pelas populações tradicionais de nosso país.
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